Desculpem o trocadilho infame, mas a vida é feita de altos e baixos. Altos, fortes, morenos, sensuais, possíveis...

sexta-feira

Faz de Conta

Não respondo teus e-mails, e quando respondo sou ríspido, distante, mantenho-me alheio: FAZ DE CONTA QUE EU TE ODEIO
Te encho de palavras carinhosas, não economizo elogios, me surpreendo de tanto afeto que consigo inventar, sou um ator, sou do ramo: FAZ DE CONTA QUE EU TE AMO.
Estou sempre olhando pro relógio, sempre enaltecendo os planos que eu tinha e que os outros boicotaram, sempre reclamando que os outros fazem tudo errado: FAZ DE CONTA QUE EU DOU CONTA DO RECADO.
Debocho de festas e de roupas glamurosas, não entendo como é que alguém consegue dormir tarde todas as noites, convidados permanentes para baladas na área vip do inferno: FAZ DE CONTA QUE EU NÃO QUERO.
Choro ao assistir o telejornal, lamento a dor dos outros e passo noites em claro tentando entender corrupções, descasos, tudo o que demonstra o quanto foi desperdiçado meu voto: FAZ DE CONTA QUE EU ME IMPORTO.
Digo que perdôo, ofereço cafezinho, lembro dos bons momentos, digo que os ruins ficaram no passado, que já não lembro de nada, pessoas maduras sabem que toda mágoa é peso morto: FAZ DE CONTA QUE EU NÃO SOFRO.
Cito Aristóteles e Platão, aplaudo ferros retorcidos em galerias de arte, leio poesia concreta, compro telas abstratas, fico fascinado com um arranjo techno para uma música clássica e assisto sem legenda o mais recente filme romeno: FAZ DE CONTA QUE EU ENTENDO.

Tenho todos os ingredientes para um sanduíche inesquecível, a porta da geladeira está lotada de imãs de tele-entrega, mantenho um bar razoavelmente abastecido, um pouco de sal e pimenta na despensa e o fogão tem oito anos mas parece zerinho: FAZ DE CONTA QUE EU COZINHO.
Bem-vindo à Disney, o mundo da fantasia, qual é o seu papel? Você pode ser um fantasma que atravessa paredes, ser anão ou ser gigante, um menino prodígio que decorou bem o texto, a criança ingênua que confiou na bruxa, um sex symbol a espera do seu cowboy: FAZ DE CONTA QUE NÃO DÓI.

sábado

Desisto...

Desisti. E isso é a coisa mais triste que tenho a dizer. A coisa mais triste que já me aconteceu. Eu simplesmente desisti. Não brigo mais com a vida, não quero entender nada. (…) Vou nos lugares, vejo a opinião de todo mundo, coisas que acho deprê, outras que quero somar, mas as deixo lá. Deixo tudo lá. Não mexo em nada. Não quero. Odeio as frases em inglês, mas o tempo todo penso “I don’t care”.
Caguei. Foda-se. (…) Me nego a brigar. Pra quê? Passei uma vida sendo o irritadinho, a que queria tudo do seu jeito. Amor só é amor se for assim. Sotaque tem que ser assim. Comer tem que ser assim. Dirigir, trabalhar, dormir, respirar. E eu seguia brigando. Querendo o mundo do meu jeito. Na minha hora. Querendo consertar a fome do mundo e o restaurante brega. Algo entre um santo e um pilantra. Desde que no controle e irritado. Agora, não quero mais nada. De verdade. (…) Não quero arrumar, tentar, me vingar, não quero segunda chance, não quero ganhar, não quero vencer, não quero a última palavra, a explicação, a mudança, a luta, o jeito. (…) Quero ver a vida em volta, sem sentir nada. Quero ter uma emoção paralítica. Só rir de leve e superficialmente. Do que tiver muita graça. E talvez escorrer uma lágrima para o que for insuportável. Mas tudo meio que por osmose. Nada pessoal. Algo tipo fantoche, alguém que enfie a mão por dentro de mim, vez ou outra, e me cause um movimento qualquer. Quero não sentir mais porra nenhuma. Só não sou um suicida em potencial porque ser frio me causa alguma curiosidade.

O mundo me viu descabelar, agora vai me ver dormir e cagar pra ele. Eu quis tanto ser feliz. Tanto. Chegava a ser arrogante. O trator da felicidade. Atropelei o mundo e eu mesmo. Tanta coisa dentro do peito. Tanta vida. Tanta coisa que só afugenta a tudo e a todos. Ninguém dá conta do saco sem fundo de quem devora o mundo e ainda assim não basta. Ninguém dá conta e… quer saber? Nem eu. Chega. Não quero mais ser feliz. Nem triste. Nem nada. Eu quis muito mandar na vida. Agora, nem chego a ser mandado por ela. Eu simplesmente me recuso a repassar a história, seja ela qual for, pela milésima vez. Deixa a vida ser como é. Desde que eu continue dormindo. Ser invisível, meu grande pavor, ganhou finalmente uma grande desimportância. Quase um alivio. I don’t care.

sexta-feira

Eu e o resto do mundo

Eu sentia tudo e com muita particularidade desde que começou a sentir alguma coisa. Tudo começou no dia em que sentiu sua primeira raiva, lembra bem. Eu isso, eu aquilo, eu, eu, eu. Desde pequenininho essa força absurda pronta pra destruir brocas ou a si mesmo.

O resto do mundo fritava menos, enquanto isso. Quem têm irmãos, pensa menos como é um absurdo nascer. O resto do mundo via que do mesmo buraco outros tinham chegado. O resto do mundo seguiu a carreira que todo o resto do mundo segue. O resto do mundo ganhou dinheiro porque o resto do mundo, a sua volta, ganhava. O resto do mundo achava que alguma coisa ia mal, alguma coisa faltava. Mas vai ver que é assim com todo mundo.
Eu sabia que faltava alguma coisa e que essa coisa que faltava, dessa maneira e desse jeito, era algo muito meu. Por isso escolhi fazer uma coisa que mais ninguém no mundo poderia fazer a não ser eu mesmo. Eu tinha tanto o que pensar e sentir, que refutri muitas coisas. Eu podia parecer preconceituoso, mas era apenas ocupado em mim mesmo. O que parecia um erro terrível, mas era só um medo filho da puta do resto do mundo.
O resto do mundo continuava achando que algo faltava e então chamou isso de tristeza. E então, ficou perto de gente triste, pra poder ser triste. Se o resto do mundo fosse eu, ficaria triste e pronto. Mas o resto do mundo precisava de mundo, pra sugar e tal. Ainda que depois, se fechasse em seu mundo pra brincar de eu. Depois achou que lhe faltava morte, e ficou perto da morte. Depois achou que lhe faltavam palavras e assim fez, morou com as palavras por anos. Até que as emprestou e virou um pouco as palavras. O resto do mundo é música, é letra, é história, é tudo. O resto do mundo é gigantesco. Mas tem um medo filho da puta de ser eu.

Eu também adoro brincar de resto do mundo. Saio sempre que posso de casa. Experimento tudo. Tento entrar nas coisas. Tento deixar as coisas um pouco dentro de si. Logo vem o medo de vomitar. De expulsar tudo que não é eu. Eu preciso do resto do mundo perto o tempo todo, para senti-lo. De longe, eu só sinto eu. Eu rio do resto do mundo. Um misto de nervoso, arrogância, ritual de sobrevivência e servidão.
Eu virei eu justamente pra me proteger do resto do mundo. Então, quando escuto que sou amado pelo mundo, duvido, provoco e espanto. O resto do mundo virou resto do mundo justamente porque ser eu enlouquece e é limitado. Então, por mais que eu seja esperto, o resto do mundo só vê um rato de laboratório, preso e correndo em sua esteirinha.
Eu adoraria casar e ter filhos e construir um lar. Mas para isso teria que ser um pouco nós. O que é quase a morte. O resto do mundo pode ser tantas coisas, pode se vestir de tantas coisas, que não é e nem quer coisa de ninguém em específico. E também acabou sozinho.
Eu como pouco e vivo enjoado. O resto do mundo engole o que vê pela frente e vive com dor de estômago. Um é ligado demais por dentro, não quer mais do que é porque o que é já quase o explode. O outro nem lembra o que esse por dentro agüenta, de tanto que carrega tudo pra ser algo. Pode tanto tudo que tudo banaliza.
Eu digo coisas feias que saem sem filtro e de dentro. O resto do mundo diz coisas lindas que já chegaram filtradas, de fora. Os dois sabem do que o outro está falando, mas é que dá uma preguiça desgraçada parar de brincar só porque a bola caiu do outro lado do muro.
Eu e o resto do mundo, somos seres solitários que se atacam. Cada um pra defender o seu ser de tantos mil anos. Um sem saber o que fazer com o amargo que desce da boca pro cu. O outro sem saber o que fazer com o amargo que sobe do cu pra boca. Um com medo do que pode calar tantas certezas conquistadas na ignorância, o outro com medo da voz trêmula que poderia ter a sua inteligência se não estivesse pautada em algo. Eu não sabe o que sente, mas diz mesmo assim. O resto do mundo tem certeza do que sente, mas quando diz, fala pelo resto do mundo. Eu entendo só de mim, o que já é uma humanidade inteira. O resto do mundo entende de todo o resto, o que faz eu parecer uma criança de cinco anos se debatendo pra entender tanta vontade de chorar ou de ser feliz.
Eu e o resto do mundo desistiram de se amar em suas roupas rasgadas pela luta. Mas nus, eu empresto do resto do mundo um silêncio que seu eu jamais lhe daria. Ter o resto do mundo dentro de si é a morte mais feliz. Ainda que doa e ainda que seja morte.

E o resto do mundo pára, quem diria. O mundo pára pra me ver. O mundo pára para ver como me sinto e se explica sem fim. Sem eu, o mundo é um lugar enorme, mas sem vida passeando em suas riquezas. Eu preciso do mundo para ser lido. E o resto do mundo precisa de mim para ser livro.
Depois eu volto a sentir tudo com uma solidão avassaladora. Depois o resto do mundo volta a rodar. A rodar e atropelar me. A rodar e trucidar me. Eu volto a martelar em si. O resto do mundo volta a somar todos os martelos do mundo para se sentir martelado. Cada um na sua despedida egoísta, vingativa e perdoável. Na sua vida a dois que não existe a não ser por essa intersecção, no ponto onde eu me esqueço pra pertencer e o resto do mundo se encontra pra ser alguma coisa.
Não é inveja isso que nutrem um pelo outro. Nem ciúme. Nem ódio. Nem maldade. É absurdo. É só absurdo. Algo tão parecido com amor que confunde a vida.